Por Manoel Gonçalves Delgado Júnior
MANUSCRITOS ORIGINAIS: Os autógrafos originais foram escritos em hebraico, aramaico e grego. Pelo caráter perecível dos materiais, não os temos mais entre nós. O que possuímos hoje são as diversas cópias destes autógrafos originais.
Considerando a abrangência geográfica, a diversidade de autores e o período de redação dos 66 livros do cânon bíblico, é um feito verdadeiramente extraordinário termos tantas famílias de manuscritos preservados e acessíveis entre nós. Atualmente, temos milhares de manuscritos[1] disponíveis para consulta e análise por pesquisadores, tradutores e eruditos bíblicos do Antigo e Novo Testamento — os chamados originais bíblicos.
Os originais bíblicos são constituídos por uma infinidade de pergaminhos, papiros, unciais, códices, versões bíblicas como a Copta e a Siríaca, citações de sermões e de escritos patrísticos, entre outras fontes. Não existe obra mais pesquisada e mais copiada em todo o mundo do que a Bíblia Sagrada.
A tarefa de pesquisa de todo este material é feita por uma ciência chamada manuscritologia. O resultado deste trabalho permite a elaboração de versões-padrão com o texto predominante nos diversos manuscritos, acompanhadas de um aparato crítico — uma espécie de nota de rodapé contendo todas as variações textuais dos diferentes manuscritos. Este trabalho é atualizado periodicamente a cada nova descoberta arqueológica e a cada descoberta de manuscritos.[2] Por exemplo, ao comparar traduções, o leitor pode observar atentamente as notas de rodapé que indicam variantes textuais relevantes, pois elas funcionam como uma “janela” para o trabalho da crítica textual. Passagens como o final longo de Marcos, a perícope da mulher adúltera e a doxologia da oração dominical ilustram tradições manuscritas mais diversas e, ao mesmo tempo, mostram a postura de transparência das edições modernas, que indicam ao leitor quando um trecho possui apoio manuscrito distinto.
Os manuscritos originais, portanto, estão acessíveis a todos os pesquisadores, exegetas e interessados. Não existindo nada secreto ou hermético no conhecimento dos mesmos; quando o assunto é o acesso ao conhecimento bíblico, temos tudo aberto e disponível para pesquisa.
SEPTUAGINTA (SÉCULO III a.C.): Versão do Antigo Testamento hebraico e aramaico traduzida para a língua grega. Segundo a tradição judaica, teria sido traduzida por 72 sábios judeus nos dias e por ordem de Ptolomeu II Filadelfo, para a biblioteca de Alexandria, no Egito.
A Septuaginta, ou Versão dos 72, é uma obra de grande valor exegético para o estudo do Antigo Testamento, do período interbíblico e neotestamentário. Foi utilizada por autores do NT, como Paulo e Lucas, que a citavam com frequência em seus escritos canônicos. Nesta versão encontram-se também os sete livros que são considerados apócrifos para judeus e protestantes, e deuterocanônicos[3] para a tradição católico-romana, além de outras obras que foram acrescentadas por serem livros de valor histórico e cultural para os judeus.
HEXAPLA DE ORÍGENES: Trata-se de uma obra de valor para a crítica textual. Esta Bíblia consistia numa transcrição em colunas paralelas de seis versões diferentes do texto bíblico. Orígenes foi um teólogo heterodoxo, representante da Escola de Alexandria de interpretação bíblica. A Hexapla possuía seis colunas com: uma versão em hebraico; hebraico transliterado em caracteres gregos; a versão grega de Áquila de Sinope; a versão grega de Símaco, o Ebionita; uma recensão da Septuaginta com (i) interpolações para indicar onde falta um trecho do hebraico — tomados principalmente do texto de Teodócio e marcados com asteriscos — e (ii) indicações, utilizando sinais chamados obeloi (singular: obelus), nos trechos onde palavras, frases ou, ocasionalmente, seções maiores da Septuaginta não refletem o original hebraico; e, por fim, a versão grega de Teodócio.[4]
VULGATA LATINA (SÉC. IV d.C.): Foi a versão medieval por excelência, produzida por Jerônimo, monge erudito e piedoso no período medieval (“versão para o povo”). Sua tradução do Velho Testamento foi feita a partir dos originais hebraicos.
“Perto do fim do quarto século, as limitações e imperfeições das antigas versões latinas tornaram-se evidentes para os líderes da Igreja Romana. Não surpreendentemente, por volta de 382 d.C., o Papa Dâmaso I solicitou que o mais competente acadêmico bíblico vivo naqueles dias, Sophronius Eusebius Hieronymus, conhecido nos nossos dias como São Jerônimo, fizesse uma revisão da bíblia latina.”[5]
BÍBLIA DE GUTENBERG (1450): Foi a primeira Bíblia impressa no Ocidente, em 1450, na prensa de tipos móveis. O advento da imprensa moderna foi uma verdadeira revolução no mundo, possibilitando o rápido acesso e uma grande difusão do conhecimento.
BÍBLIA DE ERASMO DE ROTERDÃ (1516): Novum Instrumentum, versão do Novo Testamento na língua grega baseada nos manuscritos originais, elaborada por Erasmo de Roterdã. Erasmo foi um monge agostiniano, humanista e erudito de primeira grandeza no período do Renascimento e Reforma. Erasmo, em sua época, foi a maior autoridade no idioma grego, sendo a sua tradução uma importante contribuição para o retorno ad fontes na pesquisa bíblica. Ressalta-se também que, nas diversas edições de seu Novo Testamento grego, Erasmo revisou o texto incorporando os novos manuscritos a que teve acesso. Qual foi a importância da Bíblia de Erasmo para a Reforma? De acordo com o professor Marcelo Berti, foi fundamental, pois Lutero usou a segunda edição do texto de Erasmo para sua tradução do Novo Testamento para o alemão (sem Comma Johanneum); William Tyndale usou a terceira edição como base para sua tradução do Novo Testamento para o inglês; também foi o texto base da tradução de Genebra, da King James Bible, e de basicamente toda tradução protestante até 1881 (com Comma Johanneum). O texto do Novo Testamento de Erasmo, tal como editado por Stephanus e Elzevir, tornou-se o mais importante texto base para traduções e estudos acadêmicos por quase 400 anos (!)[6].
BÍBLIA DE LUTERO (1534): Em 1522, Lutero publicou o Novo Testamento em alemão e, em 1534, a Bíblia completa. A Luther Bible foi traduzida pelo grande reformador a partir da Vulgata Latina e da segunda edição da versão grega de Erasmo. Esta obra é considerada um dos marcos da Reforma Protestante e do idioma alemão. “De fato, a tradução latina e as anotações de Erasmus ajudaram consideravelmente a Lutero enquanto procurava encontrar o significado real e literal do texto.”[7]
MANUSCRITOS DO MAR MORTO: Descobertos em meados do século XX, causando grande alvoroço na comunidade acadêmica, estes manuscritos revelaram preciosas informações sobre a comunidade judaica de Qumran, uma seita do judaísmo (os essênios). Os manuscritos são uma coletânea de escritos e regras da comunidade, obras litúrgicas, textos bíblicos e escritos diversos.
Em Qumran, foram descobertos importantes documentos que contribuíram para a moderna crítica bíblica. Os trechos mais antigos do profeta Isaías que temos hoje, assim como as diversas citações de outras passagens de livros bíblicos, inclusive do Novo Testamento, foram ali descobertos. Além de reforçar a confiabilidade do texto bíblico, os Manuscritos do Mar Morto também evidenciam a diversidade textual e teológica do judaísmo do Segundo Templo. As cópias de livros bíblicos encontradas em Qumran apresentam pequenas variações, diferentes modos de organizar o material e a convivência de várias tradições textuais que, em etapas posteriores, seriam progressivamente selecionadas na transmissão do texto, enriquecendo a compreensão histórica sem comprometer a mensagem central das Escrituras.[8] Diferente do que os céticos poderiam supor, a Bíblia foi mais uma vez confirmada em sua integridade textual e na antiguidade dos autógrafos originais. Esta é a convicção do Professor Julio Trebolle Barrera, membro da equipe internacional de editores dos Rolos do Mar Morto, que declarou que: “O Rolo de Isaías [de Qumran] fornece prova irrefutável de que a transmissão do texto bíblico, durante um período de mais de mil anos pelas mãos de copistas judeus, foi extremamente fiel e cuidadosa.”[9]
O TRABALHO DE TRADUÇÃO DAS ESCRITURAS: O trabalho de tradução bíblica é feito por missionários, exegetas e eruditos bíblicos que são especializados nos idiomas originais. Este trabalho é realizado a partir de uma acurada investigação dos manuscritos originais e exige um elevado conhecimento dos idiomas originais e da cultura e história do período bíblico, bem como da cultura e do idioma do povo para o qual se pretende traduzir as Sagradas Escrituras. Existem casos de missionários em atividade em povos de línguas ágrafas (não letradas), em que primeiro se compreende o idioma e se estabelece, por meio da linguística, a gramática do idioma pesquisado, e depois se realiza o processo de tradução concomitante com a alfabetização da etnia alvo do esforço missionário. Na maioria dos casos, trata-se de uma obra hercúlea que consome uma vida inteira de trabalho. Às vezes para se alcançar uma etnia de poucas centenas de pessoas nos lugares mais remotos do mundo. Um trabalho impressionante, apaixonado e sacrificial.
MÉTODOS DE TRADUÇÃO: Os principais métodos de tradução são a equivalência formal e a equivalência dinâmica. A equivalência formal procura traduzir o texto preservando as expressões idiomáticas e termos da língua original, mesmo que exista prejuízo para a compreensão do leitor contemporâneo. A equivalência dinâmica, por sua vez, procura traduzir expressões idiomáticas, unidades de medida e vocabulário por seus equivalentes no idioma da tradução. Temos também as paráfrases, que não são traduções literais, mas sim a reescrita criativa do texto bíblico com as percepções e transposições imagéticas do leitor-tradutor. A Bíblia Viva e A Mensagem, de Eugene Peterson, são exemplos de paráfrases bíblicas.
TRADUÇÕES EM LÍNGUA PORTUGUESA: As traduções em língua portuguesa são numerosas e possuem fidelidade aos originais. Os direitos destas Bíblias pertencem às sociedades bíblicas e às editoras especializadas, que regularmente atualizam as suas traduções. Dentre as traduções mais utilizadas no Brasil, temos: as versões de Almeida; a TB – Tradução Brasileira de 1916, que teve entre os eruditos envolvidos no seu processo nomes como o de Rui Barbosa, José Veríssimo e Heráclito Graça; NVI – Nova Versão Internacional; BJ – Bíblia de Jerusalém, uma Bíblia traduzida num esforço combinado de eruditos católicos e protestantes; NTHL – Nova Tradução na Linguagem de Hoje; NVT – Nova Versão Transformadora; Almeida Século XXI; e a King James versão em língua portuguesa. Em suma, temos muitas e valiosas opções.
CONCLUSÃO: Que longo caminho os originais bíblicos percorreram para chegarem até nós, os leitores contemporâneos no Brasil. O mínimo que poderíamos fazer diante de tamanho esforço é realizarmos uma cuidadosa leitura, com atenta devoção, a esta obra ímpar, que, além de ser a maior contribuição para a cultura dos povos, é também o inerrante e infalível registro da revelação de Deus para todos os povos.
Leia a Bíblia!
Fontes pesquisadas:
http://bibliateca.com.br/site/as-primeiras-traducoes/a-septuaginta acessado em 14/07/2018
https://marceloberti.files.wordpress.com/2017/07/o-texto-do-nt-e-a-reforma-protestante.pdf acessado 14/07/2018
https://marceloberti.wordpress.com/2014/11/17/sempre-cheque-suas-fontes/ acessado 14/07/2018
http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/a-biblia-em-portugues/ acessado em 14/07/2018
[1] “Os números apresentados aqui são significativamente menores do que a última contagem. De fato, de acordo com o Institut für Neutestamentliche Textforschung (INTF) em Münster na Alemanha, o instituto responsável pela produção da texto crítico Nestlé-Aland, hoje existem 5.824 manuscritos gregos catalogados.” – https://marceloberti.wordpress.com/2014/11/17/sempre-cheque-suas-fontes/
[2] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Manuscritos do Mar Morto ainda guardam mistérios, 70 anos depois. Jornal da USP, 2017. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/manuscritos-do-mar-morto-ainda-guardam-misterios-70-anos-depois/. Acesso em: 10 dez. 2025
[3] Deutero = outros. Canônicos = Pertencentes ao cânon bíblico. Inspirados.
[4] http://bibliateca.com.br/site/as-primeiras-traducoes/a-hexapla-de-origenes
[5] Bruce Metzger, Bart Ehrman, The Text of the New Testament. 105, citado por Berti, Marcelo op cit.
[6] https://marceloberti.files.wordpress.com/2017/07/o-texto-do-nt-e-a-reforma-protestante.pdf
[7] J.W. Aldrich, The Hermeneutic of Erasmus, Richmond; John Knox, 1966, 125 pesquisado a partir blog teologando.
[8] SOARES, Diogo J. Os Manuscritos do Mar Morto e seu impacto nas ciências bíblicas. 2025. Disponível em: https://www.diogojsoares.com.br/2025/03/os-manuscritos-do-mar-morto-e-seu.html. Acesso em: 10 dez. 2025.
[9] http://bibliateca.com.br/site/os-papiros-e-os-pergaminhos/os-manuscritos-do-mar-morto