RESENHA – WARFIELD, Benjamin B. A inspiração e autoridade da Bíblia. Trad. Maria Judith Prado Menga. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 362 p. Título original: The Inspiration and Authority of the Bible.
Por Nelson G. Abreu Júnior*
A obra A Inspiração e Autoridade da Bíblia é considerada um clássico na abordagem do assunto sobre o qual se propõe a falar. Isto significa que é um livro de referência, que aborda em perspectiva profunda e bem delineada questões sobre a Bíblia como a verdadeira Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo e dada aos homens para que conheçam verdadeiramente a Deus e sejam fiéis intérpretes do seu Criador, Redentor e Rei. O autor, Benjamin Warfield, que nasceu em 1851 e morreu em 1921, foi um dos grandes homens do seu tempo. Estudou na Universidade de Princeton e no Seminário de Princeton, onde, em 1876, formou-se com honras em virtude de sua grande capacidade intelectual. Tornou-se depois professor de Didática e Teologia Polêmica (1887-1921) nessa mesma instituição. Sua competência intelectual com certeza pode ser percebida nas páginas do livro sob consideração, que expressam com muita eloquência os pressupostos do famoso autor. Em A Inspiração e Autoridade da Bíblia observamos, desde a apresentação feita por Cornelius Van Til, aquilo que será desenvolvido com detalhe e seriedade no conteúdo, esclarecedor e bem organizado como um todo. Van Til diz que “toda interpretação da parte do homem deve, para ser verdadeira, ser a reinterpretação da interpretação de Deus por quem os fatos são aquilo que são” (p. 15s). E nós só saberemos realmente o significado dos fatos e atos delineados e interpretados por Deus na medida em que tivermos informações do próprio Deus sobre o significado verdadeiro das coisas. O Dr. Warfield, portanto, mostrará as Escrituras Sagradas como a grande revelação de Deus que causa impacto profundo na vida do homem, dando significado e razão à sua história, na medida em que o Senhor se dá a conhecer por meio de sua poderosa Palavra revelacional redentora. No capítulo intitulado “A Idéia Bíblica de Revelação” – o primeiro de oito, sem contar os apêndices um e dois – Warfield faz ecoar o sentido e a direção da história milimetricamente conduzida por Deus, o soberano Senhor que vem até o homem para que este o conheça por meio das Escrituras Sagradas. Assim, a Palavra de Deus é o ponto de contato que apresenta ao homem a glória do Deus supremo e também mostra a necessidade de salvação e redenção a este mesmo homem, atingido pelo pecado e agora carente da revelação especial do Deus todo-poderoso. O autor então diz: Em outras palavras, a religião da Bíblia apresenta-se distintamente como revelada. Ou melhor, para falar mais exatamente, anuncia-se como a religião revelada, como a única religião revelada, e se define como tal diante de todas as outras religiões, que são representadas todas como produtos, no sentido em que ela mesma não é, da arte e do engenho humano (p. 59). A Palavra de Deus, na ótica do grande teólogo de Princeton, constitui-se de atos do próprio Deus, usados para demonstrar seu poderoso e soberano poder na realização e na transformação da história e da vida humana. Vários são os subtítulos deste primeiro capítulo, o que o torna mais atrativo e belo em todas as suas explicações. Assim, quando Warfield fala da inspiração e da autoridade bíblica, ele subdivide este tema começando pela “Natureza da Revelação”, em que faz distinção entre revelação geral e especial (p. 58-64). Depois, falando do “Processo da Revelação”, traz luz à questão ao enfatizar que “por isso, não é raro dizer-se que a revelação, isto é, esta revelação especial redentora, foi comunicada em atos, não em palavras” (p. 65). A tese desse trecho é que “a revelação é, em poucas palavras, por si só um ato redentor de Deus e de modo nenhum o menos importante na série de atos da redenção de Deus” (p. 66), ficando evidente que a ênfase do assunto bíblico está fundamentada no objetivo principal de mostrar a glória soberana do Senhor na redenção de seu povo (p. 65-67). Na continuação, ele, como um teólogo organizado, não poderia se furtar a apresentar os “Modos de Revelação” (p. 67-78), dando, de maneira magistral, explicações sobre estes modos e destrinchando-os com muita propriedade no decorrer das páginas. O destaque encontra-se na página 74, em que, de maneira didática e profunda, o doutor de Princeton, com tanta simplicidade e percepção, sem perder a capacidade de navegar em águas profundas, analisa o texto de 2 Pedro 1.20-21. Neste ponto, ele trata da palavra “movido”, mostrando que “ser movido” não é o mesmo que “ser levado”, e muito menos “ser guiado ou dirigido”. Antes, aquele que é movido “… em nada contribui para o movimento induzido, mas é o objeto a ser movido” (p. 74). De acordo com Warfield, os profetas queriam que seus leitores entendessem que em nenhum sentido eles eram coautores com Deus em suas mensagens. Suas mensagens lhes são dadas, totalmente dadas, dadas a eles exatamente como são dadas por eles. Deus fala por meio deles: eles não são apenas seus mensageiros, mas “a sua boca”. Mas, ao mesmo tempo, sua inteligência é ativa na recepção, na retenção e no anúncio de suas mensagens, não contribuindo em nada com elas, mas apresentando-se como instrumentos adequados para a comunicação delas – instrumentos capazes de entender, responder e ser profundamente zelosos ao proclamá-las (p. 74). Não pode ser desprezado o elemento humano na confecção das páginas da santa Palavra de Deus. Os traços da pessoalidade humana são detectáveis por toda a Bíblia. Porém, não devemos esquecer que no final o produto é, como disse Warfield, “… um dom divino” (p. 77). A última subdivisão do capítulo I, após a análise dos modos de revelação, é “A Terminologia Bíblica”, tratada rapidamente nas páginas 78-82, mas com capacidade magistral na abordagem e definição da palavra “revelação” e suas ocorrências nas Escrituras. Estas páginas contribuem muito na construção de um entendimento claro sobre o sentido real da “revelação”, ou seja, o que ela é em toda a sua abrangência teológica. Trata-se de uma palavra que precisa ser apreciada com muita perspicácia, até mesmo por ser, vez por outra, tão confundida nos círculos evangélicos. A tese de Warfield a respeito da revelação e de seu objetivo é expressa, em sua grandeza, quando ele diz: O que é importante é reconhecer que as próprias Escrituras representam as Escrituras como não meramente contendo aqui e ali o registro das revelações – “palavras de Deus”, tōrōth – dadas por Deus, mas como elas mesmas, em toda a sua extensão, uma revelação, um corpo autoritativo de instruções graciosas dadas por Deus, ou, como somente elas, de todas as revelações que Deus pode ter dado, ainda existem – como a Revelação, a única “Palavra de Deus” acessível aos homens, “lei” em todas as suas manifestações, isto é, instrução autoritativa de Deus (p. 82). A partir do estabelecimento da ideia bíblica de revelação, temos no capítulo II uma demonstração inconfundível do pensamento da igreja e de seus grandes representantes acerca do que vem a ser a inspiração das Escrituras Sagradas. É um capítulo longo, mas dinâmico, em que homens reputados como colunas, pela seriedade com a qual trataram a Palavra de Deus, emitem opiniões sobre as Escrituras e sua inspiração. Warfield, mostrando mais uma vez sua envergadura e conhecimento, menciona grandes nomes da patrística e apresenta o pensamento de autores como Orígenes, Irineu, Policarpo e Agostinho acerca da inspiração das Escrituras. Logo em seguida, passa para reformadores como Lutero e Calvino e, mais à frente, para Charles Hodge, Rutherford, Baxter e outros (p. 86-87). Ele não se furta a apresentar o que os credos e as confissões falaram sobre o tema da inspiração das Escrituras, com muita propriedade chamando, para testemunhar de seu pensamento, homens e escritos teológicos alinhados com o próprio testemunho que a Bíblia dá de si mesma. A inspiração e autoridade da Bíblia 148 No capítulo III ele outra vez evidencia sua técnica e seu inconfundível conhecimento da exegese bíblica – além de um conhecimento teológico extra[1]ordinário – na análise tanto de textos em que o termo “inspiração” ocorre na Bíblia, quanto da ideia deste termo. São 28 páginas que tratam dessa questão, o que consiste num material excelente para todos aqueles que desejam se aprofundar nesse assunto tão pertinente. Entre outras afirmações feitas por Warfield na construção de um argumento sólido sobre a inspiração das Escrituras, ele diz que Sua autoridade reside na sua divindade e sua divindade se expressa em sua confiabilidade, e os escritores do Novo Testamento, todas as vezes que a utilizaram, trataram-na como o que eles declaram ser – um documento inspirado por Deus, o qual, por ter sido dado por Deus, é completamente confiável em todas as suas afirmações, autoritativo em todas as suas declarações e até mesmo no menor de seus detalhes, a própria palavra de Deus, seus “oráculos” (p. 121). Dito isto, o leitor pode preparar-se para encontrar uma defesa, sustentada nas páginas da própria Palavra de Deus, de que a Escritura é inconfundivelmente uma obra de Deus e, por isso, sua autoridade divina faz dela o que ela é, a despeito de crerem ou não em seu testemunho. No capítulo IV, Warfield mostra qual é “O Verdadeiro Problema da Inspiração”, mencionando alguns pensamentos que tentam enfraquecer a credibilidade dos autores das Escrituras. Ele trabalha quatro conceitos que confrontaram a veracidade bíblica e questionaram a inspiração de Deus, com a finalidade de diminuir o significado e a extensão da inspiração. A primeira abordagem é proposta por Richard Rothe e intitulada “Cristo versus os Apóstolos”; a segunda é “Acomodação ou Ignorância?”; em seguida temos “Ensino versus Opinião”, e, por último, “Fatos versus Doutrina”. Apesar de não ser possível fazer uma descrição resumida de cada um, pela falta de espaço, todos estes conceitos visam à diminuição e banalização do real significado de “inspiração”, tão bem construído nas páginas das Escrituras Sagradas e da mesma forma bem explicados no capítulo em questão. Após a explicação dada pelo autor sobre cada um destes pontos confrontadores, ele, em subtítulos como “O Imenso Peso da Evidência da Doutrina Bíblica” e “Imensa Presunção Contra Supostos Fatos Contraditórios da Doutrina Bíblica”, propõe-se a demonstrar de forma indefectível que a Bíblia como um todo é confiável e os autores bíblicos divinamente inspirados são confiáveis como mestres doutrinários. Ainda que a discussão tenha sido intensa em todo este capítulo, diz o Dr. Warfield que “a questão real, em poucas palavras, não é nova, mas a velha questão recorrente, a saber, se a base de nossa doutrina deve ser o que a Bíblia ensina ou o que os homens ensinam” (p. 181). A ideia da inspiração bíblica é fundamental para que as Escrituras sejam vistas como autoridade de Deus para a vida de seu povo, mesmo que tal ideia não seja um pensamento doutrinário mais importante do que outros que temos na Bíblia. Ainda que as Escrituras não fossem inspiradas, elas não perderiam sua autenticidade e valor, pois o seu conteúdo é divino e, em última instância, somente o próprio Deus faz a homologação de si mesmo. Os capítulos V a VIII muito dirão sobre os termos que são empregados no Novo Testamento a respeito da ideia de inspiração e suas várias interpretações. Especificamente nos capítulos VI e VII, vê-se mais uma vez o doutor de Princeton fazer uma defesa vigorosa da inspiração baseando-se na história e nos debates que nela ocorreram sobre a efetivação da Escritura como inspirada por Deus, tendo o próprio Deus como autor do seu conteúdo. Nas páginas 240-280, Warfield trata de passagens que falam das Escrituras como se fossem o próprio Deus, e ele mescla, numa profundidade ímpar, as expressões “Ela diz”, “A Escritura diz” e “Deus diz”. Ele analisa este pensamento em Josefo, Filo e outros historiadores, e no próprio texto bíblico original, para depois concluir dizendo: Em nossa opinião, esta diferença não faz diferença real em sua implicação, pois, em nossa opinião, a essência do caso é que, sob a força de sua concepção das Escrituras como um livro oracular, era a mesma coisa para os escritores do Novo Testamento dizer “Deus diz” ou “as Escrituras dizem”. Isto fica muito claro, como seu verdadeiro ponto de vista, por sua dupla identificação da Escritura com Deus e de Deus com a Escritura, a qual anunciamos no início deste artigo e pela qual Paulo, por exemplo, poderia dizer da mesma maneira “diz a Escritura a Faraó” (Rm 9.17) e “Deus… disse: para que jamais voltasse à corrupção” (At 13.34). Podemos nos contentar, tanto no Novo Testamento quanto em Filo, em traduzir a frase “ela diz”, sempre que ocorra, com a implicação de que este “ela diz” é o mesmo que “a Escritura diz” e que este “a Escritura diz” é o mesmo que “Deus diz”. É esta implicação que é realmente o fato fundamental no caso (p. 279s). Warfield mostra isto com uma clareza magnífica, tirando qualquer nuvem que surja no pensamento daqueles que com fidelidade estudam a Palavra de Deus e tenham, porventura, refletido a este respeito. E para aqueles que nunca o fizeram, fica nessas páginas o registro indubitável da necessidade de se avaliar com profundidade o rico livro de Deus partindo do princípio de que quando a Bíblia diz, é o próprio Deus quem diz. No capítulo VIII, buscando esclarecer o sentido e o significado de “oráculos de Deus”, com o objetivo de provar, com uma exegese sustentada, que as Escrituras são de fato palavras de Deus, o autor esmera-se com determinação e demonstra cabalmente o que realmente quer dizer a palavra “oráculo” quando aparece em quatro passagens bíblicas: At 7.38; Rm 3.2; Hb 5.12 e 1Pe 4.11. Há várias explicações para ela, mencionadas pelo próprio Warfield na obra, mas nenhuma alcança a profundidade e técnica do doutor de Princeton. Sua análise é baseada numa exegese intensa, inclusive do sentido da palavra no grego clássico, no helenístico e no patrístico. Esta análise evidentemente acaba por fortalecer a ideia de autoridade contida na palavra “oráculo”. Este capítulo deve ser lido por causa de seu conteúdo, citando autores consagrados A inspiração e autoridade da Bíblia 150 e seus pensamentos que corroboraram com tanta eficácia a conclusão a que chegou Warfield, de que Isto significa dizer que temos provas convincentes e oportunas de que as Escrituras do Antigo Testamento, como tais, foram consideradas, pelos escritores do Novo Testamento, como um livro oracular que não meramente contém, mas que é a “declaração”, a própria Palavra de Deus, que deve ser considerada como tal e à qual devemos nos submeter, porque ela é nada menos que o discurso de Deus cristalizado (p. 328). Nos apêndices I e II encontra-se um material consistente e robusto sobre a formação do cânon e do pensamento dos pais da igreja nos séculos II e III. Em seguida há uma abordagem muito interessante sobre a inspiração e a crítica, para mostrar a confessionalidade de uma igreja santa e verdadeira, que mesmo diante das pressões precisa manter-se criteriosa e ousada na afirmação de que a Bíblia é verdadeiramente a Palavra de Deus. O livro em questão é uma leitura fundamental e de grande proveito para os ministros de Deus e para todos quantos amam a Escritura e desejam conhecer mais seus pressupostos teológicos. Ele traz às nossas mãos a eloquência de um homem profundo, que faz sentir, no desenvolvimento de seu livro, a piedade, o amor e a responsabilidade de informar seus leitores sobre a soberania de Deus na construção vigorosa e sublime de sua santa Palavra. Algumas observações, porém, são necessárias quanto a certos problemas que podem ser apontados no livro, o que não significa que afetem a grandeza da obra. É importante observar que quando falamos sobre “inspiração e autoridade bíblica” também é preciso definir os conceitos de “infalibilidade e inerrância bíblica”. O livro não apresenta uma abordagem desta questão, embora fosse de se esperar que numa obra tão profunda esses vocábulos e sua análise estivessem presentes. Outra observação deve ser feita quanto à transcrição de extensos textos latinos e gregos sem uma única nota de rodapé com sua tradução, principalmente nos capítulos V, VI, VII e VIII. Além disso, a partir do capítulo V o livro torna-se muito denso e muitíssimo técnico, podendo causar certo desânimo no leitor. Embora não se trate de um livro devocional, mas acadêmico, a intensidade da técnica utilizada pelo autor pode gerar espanto. Nada disso, porém, é capaz de anuviar o que os leitores têm a descobrir no transcorrer da leitura deste belo e apaixonante livro, tão bem escrito e profundo, como bem disse Cornelius Van Til em sua apresentação: Sem voltar a esta Bíblia, a ciência e a filosofia podem florescer com capital emprestado, como o filho pródigo floresceu com a riqueza de seu pai. Mas o pródigo não tinha o princípio da autossustentação. Nenhum homem a tem, até aceitar a Escritura que Warfied apresenta (p. 55). Que bela apresentação. Que as Escrituras, tão bem defendidas nestas páginas, conduzam homens à presença de Deus. Omnibus coram Deo.
Nota. Resenha originalmente publicada na revista FIDES REFORMATA XVi, Nº 1 (2011): 145-150
* Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (1999) e mestre em Teologia Sistemática pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (M.Div., Teologia Sistemática). É pastor da Igreja Presbiteriana Betânia, em Cuiabá, e leciona no Instituto Bíblico Rev. Augusto Araújo.